Ao mesmo tempo que evoluem as técnicas genéticas, continuam imutáveis os limites naturais para a reprodução humana
O
prof. dr. Dirceu Henrique Mendes Pereira é um dos pioneiros na utilização de métodos de reprodução assistida no Brasil. Médico
especialista em ginecologia e obstretrícia pela Faculdade de Medicina da USP, seu trabalho nesse campo começou quando ainda
nem se sonhava com clonagem. Embora atualmente os limites para a manipulação dessa técnica com seres humanos sejam sobretudo
éticos, o médico não acha impossível que isso venha a ocorrer um dia. Por enquanto, ele frisa, cabe à sociedade como um todo,
e à comunidade científica em particular, debater o tema buscando estabelecer regras que atendam a um consenso bioético viável.
Co-autor de Na Rota da Cegonha - Um passe ao alcance da Fertilidade, livro que funciona como um manual esclarecedor para suas
pacientes, o médico já foi presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (79/80), entidade que hoje continua
representando, como secretário. Na entrevista a seguir ele fala sobre a infertilidade, comum a 15% da população, e suas soluções.
VIVER
PSICOLOGIA - Já é possível comprar sêmem humano pela internet, para fins reprodutivos. Inclusive importado. O que o senhor
acha disso?
Dr. Mendes - Acho isso um absurdo. Pelo que entendi, o casal poderia fazer uso desse material
inclusive de forma caseira. Eu pergunto quem se responsabilizará quando ocorrer algum problema. Sobretudo, considero essa
atitude de um mercantilismo atroz. Não digo que um centro de reprodução não possa acessar, se necessário, esse tipo de material,
mas as pessoas fazerem isso em casa, como quem compra um produto qualquer, é abominável.
VP - É fato que muitos
casais têm adiado a paternidade em benefício de suas carreiras profissionais. Que problemas isso pode causar à fertilidade?
Dr.
Mendes - Realmente muitas mulheres estão postergando o planejamento de ter filhos, privilegiando a carreira profissional.
Mas as mulheres têm uma reserva ovariana imutável. Desde que nascem até o fim da fase reprodutiva a mulher tem uma população
de óvulos que já está definida desde o começo (são cerca de 300 a 400 mil óvulos). Eles também absorvem todos os impactos
decorrentes de maus hábitos de vida, como por exemplo o tabagismo ou o uso de drogas. Condições ambientais, como a qualidade
da água consumida e a presença de agrotóxicos nos alimentos também interferem na fertilidade feminina. Somos nós que poluímos
o ambiente, mas nós mesmos pagamos o preço da agressão ao meio. A degração ambiental proveniente do lançamento de metais pesados
(mercúrio, chumbo, cádmio, etc.) que vão parar na água ou nos alimentos consumidos também é responsável pela proliferação
de radicais livres no organismos e, estes, por sua vez, danificam a membrana lipoprotéica que recobre nosso material genética,
o DNA. Além disso, adiando o momento da maternidade a mulher também se expõe a um número muito maior de menstruações. As flutuações
hormonais decorrentes de alterações no ciclo podem causar doenças mênstruo-dependentes, como endrometriose, fibromioma e outros.
Fora o fato de muitas vezes ela poder estar vulnerável à aquisição de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs).
VP
- Que orientações podem ser dadas aos casais que planejam ter filhos depois dos 30?
Dr. Mendes - Podemos
sugerir mudanças no estilo de vida, alimentação mais saudável, privilegiando alimentos integrais, diminuição na ingestão de
açúcar refinado, que é um grande mal, e o aumento no consumo de ácidos graxos poli-insaturados, presentes em alimentos como
os peixes de águas frias, caso do salmão, por exemplo, e em sementes como a de linhaça, excelente.
VP - De que forma
problemas emocionais e psicológicos também interferem?
Dr. Mendes - Via de regra, todos chegam aqui com
um alto grau de ansiedade, sentindo uma pressão muito grande, pois sua performance é cobrada pelos familiares, pelo meio social
e até por eles próprios. Essa situação sugere uma carga de estresse elevada, muitas vezes com repercussões psicossomáticas
e, não raro, um estado depressivo. O impacto de sucessivos fracassos também é muito contundente. Em algumas oportunidades,
nós percebemos a necessidade de encaminhá-los para uma psicoterapia individual ou de casal.
VP - Em que situações
essa necessidade se torna clara na clínica de reprodução humana?
Dr. Mendes - Quando é detectada pelo especialista
em fertilidade uma alteração anímica de maior relevância, e isso geralmente é percebido com os atos falhos colhidos durantes
as entrevistas. Após falhas de procedimento no processo de reprodução assistida, também é conveniente a intervenção de um
psicólogo, para ajudá-los a elaborar o fracasso terapêutico. Outra situação em que a presença do psicólogo é muito importante
é na ocorrência de malformação fetal.
VP - A possibilidade de clonagem humana, ainda que não tenha sido até agora
comprovadamente praticada, cria no imaginário da sociedade a idéia de que tudo é possível em termos de reprodução humana.
Quais as principais implicações de essa idéia ser adotada como premissa e, no momento atual, quais as possibilidades de isso
de fato vir a acontecer?
Dr. Mendes - A clonagem humana ainda é uma temeridade quando se trata de finalidade
reprodutiva. Isso porque não se tem idéia muito clara sobre os riscos para um ser humano oriundo dessa técnica. Sabemos que
em animais têm acontecido deformidades físicas expressivas, ou mesmo óbitos. Talvez sejam necessários ainda alguns anos de
aprimoramento antes que possa ser levada a cabo com esse fim. Quanto à clonagem para obtenção de células tronco, somos plenamente
favoráveis, pois esta técnica pode salvar muitas vidas, contribuindo para a área de transplante de órgãos, terapia de doenças
degenerativas, como Parkison, Alzheimer, leucodistrofias, miocardiopatias, etc.
VP - Há algum tempo, membros de
uma seita vieram a público anunciar a pretensa realização de clonagens humanas. Embora o fato tenha sido acolhido com desconfiança
pela mídia, houve uma grande repercussão global sobre o fato. Neste momento, já foi possível comprovar ou refuntar definitivamente
este fato?
Dr. Mendes - Até agora não foi provado nada. Estão mantendo uma série de fatos em sigilo, o que
nos leva a concluir que esse anúncio não passou de um efeito de mídia, ou de autopromoção.
VP - O refinamento da
técnicas de reprodução assistida abre a possibilidade de seleção genética dos futuros fetos. Quais os limites (dos pontos
de vista ético e tecnológico) dessa seleção? Seria válido escolher o sexo do bebê, evitar doenças congênitas e manipular condições
genéticas, como a cor dos olhos, por exemplo?
Dr. Mendes - Já tivemos exemplo de eugenia na Alemanha nazista
e a história nos mostrou a inadequação deste procedimento. Como a ciência caminha à frente da bioética, urge que a sociedade
científica atue de forma disciplinadora sobre estas conquistas. A escolha do sexo do bebê com o fim de evitar doenças congênitas
é aceita pela comunidade científica. No entanto, fazer essa opção por razões étnicas e religiosas (judeus e árabes são exemplos
de culturas que valorizam o fato de o casal ter filhos homens) não deve ser incentivado no Brasil. Não temos legislação a
esse respeito, por enquanto. Isso nos leva a proceder segundo as normas éticas do Conselho Federal de Medicina (CFM).
VP
- Quais os principais objetivos da sociedade Brasileira de Reprodução Humana?
Dr. Mendes - A SBRH tem um
projeto, neste momento, voltado para a sociedade e procura atuar como agente educacional, visando informar tanto a adolescente
quanto a mulher em sua plenitude reprodutiva ou na fase próxima ao climatério. Uma das formas desse projeto são as campanhas
de esclarecimentos e atualmente estamos atuando junto à liga de basquetebol feminino, em Osasco, na região metropolitana de
São Paulo. Procuramos levar informações sobre prevenção às doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), fertilidade e anticoncepção,
entre outros temas.
VP - A gravidez gemelar ou múltipla continua sendo ocorrência freqüente nos casos de reprodução
assistida?
Dr. Mendes - Os processos de reprodução assistida propiciam um número muito maior de casos de
gravidez múltiplas, em comparação com a população geral. Isso se deve ao número de embriões transferidos para o útero. As
normas do CFM nos permitem a transferência de até quatro embriões. Porém, nós estamos reduzindo para dois embriões, justamente
para evitarmos gestação múltipla, pois entendemos que com isso acabamos gerando um conflito. O casal busca uma solução e acaba
encontrando um problema. O resultado pode ser uma situação dramática.
VP - O que é feito hoje com óvulos fecundados
não gestados?
Dr. Mendes - Os embriões excedentes podem ser criopreservados e guardados por um período de
dois ou três anos. Dentro desse período o casal pode utilizá-los se houver falha de implantação no ciclo que motivou o seu
congelamento. O casal pode, ainda, doar os embriões para outro casal ou para pesquisa. Uma tática interessante é a tranferência
desses embriões congelados para a mulher numa época do ciclo mentrual em que não ocorra a implantação (geralmente próxima
da menstruação). Com isso, as células voltam à sua origem. Mas não há um período de tempo limítrofe para a conservação do
embrião. Após o congelamento (a uma temperatura de -196º C), os gamentas ou embriões podem permanecer indefinidamente estocados.
No entanto, num prazo de até três anos de permanência no banco de tecidos, os casais geralmente decidem o destino dos gamentas
ou embriões.
VP - Quais os limites claros que existem hoje para a utilização das técnicas assistidas de reprodução
e em que sentido aponta a evolução desse conhecimento?
Dr. Mendes - As técnicas de reprodução assistida
tiveram, ao longo desses 25 anos, um desenvolvimento exponencial. Chegamos, inclusive, à tecnologia da clonagem, o que no
passado parecia ser uma obra de ficção. Alguém se lembra de Aldous Huxley e seu Admirável Mundo Novo? Como já disse, a bioética
é que tem a grande responsabilidade de normatizar o uso desse benefício pela sociedade.
VP - Qual o seu conselho
às mulheres que depositam hoje toda a sua esperança de ter um filho nas mãos dos avanços científicos?
Dr. Mendes
- Eu diria: Mulheres, não posterguem em demasia o seu projeto de maternidade, pois o nosso organismo tem uma evolução biológica
programada, ao passo que a carreira profissinal, esta sim, pode ser cadenciada. A grande virtude é conciliar carreira profissional
com a maternidade. Muitas mulheres com excelente performance profissional, no entanto, esquecem-se de ter filhos na idade
biológica ideal e nos procuram aos 40 anos para iniciar seu projeto de maternidade. Muitas vezes, é tarde demais, pois a possibilidade
de engravidar nessa fase da vida é pequena e a taxa de abortamento é alta.
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